Tem antecedentes, como a Comunidade Europeia de Defesa (CED), projecto do começo dos anos 50, quando se congeminavam as várias comunidades, – a seis…– e se pretendia que fosse uma antecipação da integração, no plano militar, mas com uma forma mais avançada porque teria um carácter supranacional.
E se esse tempo era de confronto entre dois sistemas de países, tempo do que para simplificar chamarei “guerra fria”, e essas congeminações estavam dela impregnadas, é interessante que, para encontrar antecedentes da PESC e das suas características, Lucas Pires (Que é a Europa, de 1993) tenha ido buscar as Cruzadas…
A CED não vingou, apesar da forte argumentação de Adenauer que justificou «a nossa razão (dele, República Federal da Alemanha) para aderir à comunidade europeia militar (por ela parecer) o melhor meio, se não o único, para recuperar as províncias perdidas a leste».
Mas se a supranacional da defesa, isto é militar e de ataque, não teve sucesso, a anterior criação da OTAN, em 1949, incluía os países europeus que viriam a integrar-se na CECA, na CEE e no Eurátomo, o que não obstou a que houvesse insistência na criação de uma estrutura de cariz militar no âmbito europeu ocidental, como foi o caso da União da Europa Ocidental (UEO), que, surgida ou interpretada como oposição à atlantista OTAN (sempre com as latentes ou explícitas reservas da França ao atlantismo), reflectia alguns laivos de independência ou autonomia relativamente aos Estados Unidos, mas sempre também a verem-se frustradas essas pretensões.
No plano da política externa, até ao Acto Único de 1986 pode dizer-se que esta não tinha consagração institucional, estatutária, nem prática corrente, fazendo parte da reserva cada vez mais estrita e estreita das soberanias nacionais.
O Acto Único, ao alterar ou adaptar alguns aspectos do Tratado de Roma, actualizando-o a 12 e com um centro e uma periferia, incluiu uma nova figura, a da cooperação europeia em matéria de art. 30º, em que se dizia que «as Altas Partes Contratantes, membros das Comunidades Europeias, esforçam-se por formular e aplicar uma política externa comum».
E, como então escreveram Alain Roux e Alain Terrenoire (A Europa e Maastricht – Guia Prático para a Europa 93, de 1992), «é abusivo pensar que Maastricht abriu caminho a uma política externa comum».
Embora esse caminho viesse sendo aberto, sobretudo por quem lutava pela concretização da “vocação federal”, o que o Acto Único trouxe foi a consagração da cooperação política externa (expressão adoptada na publicação da Assembleia da República sobre o Tratado da União Europeia).
Como escrevi há dezena e meia de anos – em Décadas da EUropa – :
«O acordo assinado em Maastricht avançaria, em relação ao Acto Único, com inovações importantes:
i) a possibilidade de a Comunidade realizar acções comuns;
ii) a comunitarização da política externa;
iii) a abordagem, a nível comunitário, da segurança e da defesa, instituída pela “União e seus Estados membros (que a) definirão e executarão”.
«Será este um domínio em que mais divergirão as interpretações, defendendo uns que é onde o ataque às soberanias nacionais é mais profundo, dizendo outros que foi caminho significativo no caminho da União Política, afirmando ainda outros que foi pequeno o avanço e que é indispensável ir mais além, aproveitando a Jugoslávia e outras situações para exigir mais no mesmo caminho.
«Assim se exemplificará uma das virtudes públicas ou um dos “vícios privados” de Maastricht: o de possibilitar interpretações.
«Mas os factos, o que não é susceptível de interpretações morigeradores ou do inverso, é que, em Maastricht, se avança com uma outra figura, que substitui a da “cooperação política externa”, a figura da “política externa e de segurança comum”, ligada à “afirmação da sua identidade (da União) na cena internacional” incluindo “a definição, a prazo, de uma política de segurança comum, que poderá conduzir, no momento próprio, a uma defesa comum”.
(…)
«Num outro plano, o mesmo pilar de Maastricht consegue a (re)conciliação das correntes “atlantistas” e “europeístas” quando, afirmando a PESC, a coloca sob a tutela da OTAN e da UEO, num outro abstruso compromisso de organizações belicistas, nascidas ou concebidas para uma situação de “guerra fria” e de “inimigo a leste”, organizações que Maastricht, se não recupera (porque não é o caso disso), valoriza e toma como seu “chapéu de chuva”, não se sabendo quem se vocaciona para ser o “braço armado” de quem e contra quem.»
[Depois se verá…]
Deixando este pecadilho de me auto-citar, ainda queria recuar um pouco para retomar a confessada confusão com as siglas.
É que a questão das relações externas não é a mesma se existem dois sistemas de países qualitativamente diferentes, isto é, com características de organização social antagónicas, com conceitos que se pretendem concretizar incompatíveis, com objectivos diferentes, ou se, no essencial, os “modelos”, as formações sociais, se uniformizam em praticamente todo o universo, ou se existe um “modelo”, uma “formação social”, que é tão predominante que as eventuais excepções no terreno não mais são que… excepções e, por vezes, incómodas pedras no sapato.
Por isso, um conceito como o de coexistência pacífica só teria sentido no primeiro caso. E foi nele que se baseou todo um movimento, no final da década de 60 e na primeira metade da década de 70, por uma segurança e cooperação europeias, para que se mobilizaram Estados com esse conceito nas suas matrizes, e partidos, e movimentos políticos e religiosos que, por defenderem o mesmo conceito, por defenderem a paz, ou por serem contra a guerra, qualquer a sua temperatura…, movimento que levou à criação de uma organização de segurança e cooperação europeias, cuja assinatura em Julho de 1975, acto a que o Estado Português se associou com a juventude do 25 de Abril, fez vislumbrar, fugazmente, um caminho de esperança para as relações externas entre os
países europeus, caminho que se ficou por uma organização inconsequente, caminho que se ficou pela esperança, embora esta ainda tenha resistido até ao Acto Único, e nele tenha deixado a sua impressão digital com as expressões que já referi e que Maastricht veio substituir com a sua PESC.
É-me, no entanto, indispensável melhor datar esta substituição, e o rumo então tomado pelas Comunidades Europeias, porque, decerto por incapacidade minha…, não consigo “ler”, entender, o processo da integração europeia na última década do século xx e nestes primeiros anos do 3º milénio da era, sem um esforço de compreensão das dinâmicas e das condições que se vão alterando.
Para um debate actual da PESC, não sou capaz de prescindir, no mínimo, da referência aos seus antecedentes e à sua génese.
Assim, não pode deixar de se relevar a circunstância de, no final do dos anos 80, depois do Acto Único, ter sido levada a bom termo – na avaliação dos seus próceres – a ofensiva final da “guerra fria”, com a destruição (por dentro) do sistema de países socialistas.
E foi na primeira presidência de um dos novos Estados-membros, entrados em simultâneo com a adopção do Acto Único e a criação de uma periferia consistente (embora incompleta), na presidência espanhola do primeiro semestre de 1989, que se determinou a data do início da primeira fase da União Económica e Monetária, para na presidência seguinte, francesa, se fixar o calendário de uma Conferência Inter-Governamental com o encargo de redigir uma proposta para a institucionalização desse objectivo, após a criação do mercado interno, objectivo 1992.
Mas era pouco. Nas novas condições, pareceu de arriscar ir mais além. Por isso mesmo, na presidência do primeiro semestre de 1990, no Conselho Europeu de Dublin, em reunião especial convocada para sobretudo se tratar da «unificação alemã» e «das relações com os países da Europa Central e de Leste», bem como «do processo da conferência de segurança e cooperação europeias (CSCE)», no quadro da cooperação política externa (CEP) tal como se institucionalizara no Acto Único, assim se alargando a agenda ao problema da união política.
A proposta foi conjunta do presidente Mitterand e do chanceler Köhl, isto é, franco-alemã e anterior à cimeira a 12. Foi o salto, num caminho feito de passos, ou a decisão de passar a um estádio novo no processo, que foi assim que Bella Balassa caracterizou a integração (económica e não só, ou enquanto só).
Na presidência seguinte, italiana, houve mais um impulso para o salto. Segundo o “Boletim das Comunidades Europeias-Comissão”, nº 10-1990, «relativamente à união política, o Conselho reafirmou a vontade de transformar progressivamente a Comunidade Europeia, desenvolvendo a sua dimensão política (…)» e foi sublinhada «a existência de um consenso relativamente ao objectivo de uma política externa e de segurança comum».
Sublinhe-se, também, que, em resultado dessas decisões e consensos, no Conselho de Roma se verificou – e lamentou, formalmente! – o atraso que se ia verificando no objectivo livre circulação de pessoas, uma das quatro liberdades de circulação do mercado interno, também se insistindo na «necessidade de levar por diante de uma forma mais activa a aplicação do programa de acção para a execução da carta social».
Ficou a confissão, o lamento e a piedosa insistência na necessidade de não deixar para trás a dimensão social. A moeda única e Banco Central Europeu, vertente federalizadora embora da CIG económica, e a PESC e o terceiro pilar, no que respeitasse a essa aceleração federalizadora e, do mesmo passo, assimetrizante, foram objectivos avassaladores no espaço em integração, na embalagem da começada a chamar globalização. Não sem os constrangimentos no explicitamente político, nomeadamente na PESC, da metodologia inter-governamental e do grande peso da condicionante soberanias e independências nacionais.
Por isso, questões anatematizadas como relíquias ou velharias, mas que a metodologia CIG, contraditoriamente, mantinha e mantém, não obstante seja com base no respeito pelas reservas de soberania e de independência dos Estados membros, com expressão na necessidade da unanimidade das ratificações, que se procuram formas de serem as próprias CIG a afirmarem e legitimarem a obsolescência dessas reservas.
Teria sido o salto tentado demasiado ambicioso para as condições objectivas e subjectivas!
Daí o imbróglio criado com a Constituição Europeia patenteada por Giscard d’Estaing.
Tenho por adquirido que o processo de integração, respondendo a uma necessidade objectiva decorrente da internacionalização da actividade económica, limita a soberania e a independência nacionais, enquanto absolutos, por via da institucionalização de uma interdependência de facto.
No entanto, essa institucionalização, por mínima que seja, é mais gravosa para umas soberanias e independências nacionais que para outras pois as interdependências são assimétricas e, num determinado tipo de relações sociais, assimetrizantes espacialmente e agravando profundamente desigualdades sociais, de classe.
Assim, a defesa da soberania nacional, em muitos casos, confunde-se (ou pode confundir-se) com a luta social, pela defesa dos interesses dos trabalhadores, das populações.
E a politica externa e a segurança e a defesa é elemento intrínseco das soberanias nacionais.
Por outro lado, e reforçando esta perspectiva, a PESC resulta de uma necessidade afirmada de segurança comum, e de segurança contra um “inimigo”.
“Inimigo” que, nos tempos da “guerra fria” estava perfeitamente identificado, tão identificado que fazia nascer a OTAN contra o Pacto de Varsóvia que só viria a nascer um lustro depois… mas que, na ausência deste “inimigo” aquando do nascimento da PESC, levaria a perguntar-se onde estava ele.
E aqui deixo uma reflexão que há longos anos me acompanha: a da necessidade de se criarem “inimigos” que justifiquem uma segurança e uma defesa que, deixando de ser integrantes das políticas nacionais, o sejam de políticas “comuns”, comuns a países em integração ou união europeia, sob um chapéu mais abrangente, global, imperial.
Ora essa necessidade foi anunciada e denunciada há muitos, muitos anos, na segunda metade do século xx, e resulta da então prevista inevitabilidade da militarização da economia no sistema capitalista então minuciosamente estudado e, nas suas condições de então, então antevisto.
E a necessidade de “inimigos” torna-se premente porque a economia é cada vez mais armamentista e militarizante, o complexo industrial-militar mais dominante.
A informação que se expande inevitavelmente, chegando aos cidadãos, obriga a justificar – ainda que de forma desinformadora – o reforço da segurança, da defesa, da PESC.
Assim se inventam “inimigos”. Que se tornam reais.
Também porque há acesso a recursos naturais que se têm de controlar. Também porque quem cria Frankensteins depois com eles se têm de haver.
Estas reflexões ficam apenas como apontamento pois exigiram um desenvolvimento aqui não curial mas que, aqui, julguei dever trazer como apontamento ou nota.
A PESC foi derrapando numa transformação em “política comunitária de relações externas e de defesa” e numa “defesa comum e autónoma” e, nessa derrapagem, a ausência de autonomia relativamente aos Estados Unidos, ou a sua impossibilidade, surge evidente, além de que em várias oportunidades põe a descoberto as divisões numa União em que os Estados-membros se agrupam em várias divisões: os que pertencem à UEM, ao euro e ao BCE, os que a estes não pertencem porque não querem, os que não pertencem porque não podem, os que não pertencem mas vão a caminho; em relação à política de segurança e defesa, os que são da União Europeia e da OTAN, os que são da União Europeia mas (ainda?) não são da OTAN e persistem na sua neutralidade, os que ainda não são da União Europeia mas já são ou caminham para ser ou pretende-se que sejam da OTAN.
(...)
E qual, nestes desafios, o lugar da PESC, o papel do “senhor PESC” ou de um ministro das relações externas e de segurança ao lado de um Presidente da União Europeia a juntar à bandeira e ao hino, numa eventual futura constituição de uma União Europeia constitucionalizada?
A PESC surge como expressão de uma soberania supranacional, “europeia”, da “vocação federalista” da UE, e mesmo que o esconda, reflectindo directórios de facto que se encontram na sua génese – proposta franco-alemã, Köhl-Mitterand – e dependências ou tutelas imperiais.
Mas essa supranacionalidade confronta-se com o facto de serem áreas intrínsecas de soberanias nacionais que resistem, adaptando-se, cooperando, partilhando-se mas parecendo não consentir que sejam por completo e em definitivo ultrapassadas.
Volto e termino com o recurso à minha frequente confusão, mais acto falhado ou desejo subliminar:
_ que, no futuro da Europa, PESC queira dizer Política Europeia de Segurança e Cooperação, ou, dobrando os esses, Política Europeia de Segurança, de Solidariedade e de Cooperação.
Zambujal, 22.06.2007
...”
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CADERNO DE PENSAMENTOS:
O texto de referência traduz uma visão histórica moderna da problemática europeia chamada Política Externa e de Segurança Comum (PESC). E a história está simples, precisa e bem contada.
Portanto, ultrapassando pormenores de conteúdo estritamente político (mas incontornáveis), a problemática PESC está ligada intimamente à questão da federalização da União Europeia e aos interesses nacionais dos países seus constituintes de se manterem politicamente e estrategicamente autónomos, soberanos e independentes.
Questão esta que circula (estritamente) na (alta) “esfera” da política externa e nas relações internacionais (e na estratégia) dos actores do sistema internacional confinados geograficamente ao continente europeu.
Porque numa perspectiva internacional global o problema já se põe de uma outra forma; de outra maneira seria difícil compreender a verdadeira natureza e amplitude de organizações internacionais como a ONU, UEO, OSCE, OUA e, mesmo, o caso da NATO (depois da culminação da Guerra Fria com o derrube do Muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética).
Os países da Europa Ocidental, e, em particular, os ora constituintes da União Europeia têm uma certa vocação histórica para a interiorização da sua política, dos seus problemas, das suas ameaças interiores, da sua cultura, não dando relevo aos dados históricos que contabilizam duas guerras mundiais no território do velho continente.
No entanto, surgiu um dado novo, um fenómeno também ele globalizante alterou radicalmente este estado de letargia política no seio da Europa (e nos Estados Unidos, naturalmente) – o 11 de Setembro de 2001.
A ameaça irreal passou a ser real e provável.
E se os Estados Unidos “atacaram” esta questão colocando-a num estádio de “ataque efectivo e iminente” à sua soberania e, mesmo, à sua sobrevivência, na Europa (no mesmo tempo político e na mesma actualidade), os países da União Europeia ainda discutem relações de política externa e de segurança comum, sendo os interesses da discussão confinados à problemática particular e privada dos respectivos Estados membros.
Mas a questão transitou de nível, portanto; e não parece ser o tempo certo de estudar esta questão como um problema de salvaguarda da soberania política e estratégica de um qualquer país europeu nos seus jogos no campeonato das relações internacionais; trata-se antes de planear a segurança e defesa do espaço da União Europeia.
Na verdade, deverá ser criar um “directório” comum de segurança e defesa a todos os países da União Europeia.
Se tal empreendimento pretende dar resposta a um problema (potencial) de sobrevivência dos Estados Europeus a uma ameaça assimétrica que pode ter uma configuração militar, ou económica, ou política, ou social, etc. ???
(ou a uma panaceia de ameaças, o que poderá ser a expectativa mais racional)
A resposta parece ser exactamente essa; julga-se ser provável e expectante (a curto ou médio prazo) esperar pelo surgimento real na Europa de ameaças à integridade política, económica e social dos Estados e das pessoas.
Para tal basta recordar (como breve ilustração de referência) que a Europa é o território político mais rico do mundo, onde as populações têm uma qualidade de vida mais elevada, uma esperança de vida mais alta, onde o ensino tem uma qualidade elevada e é acessível a todas as populações, onde a esperança de carreira de um jovem universitário é (por norma) elevada.
(entre muitos outros itens passíveis de avaliação)
Portanto, a PESC não é uma hipótese, uma escolha, um caminho possível; é, antes, uma modalidade de acção indiscutível e imprescindível à União Europeia e aos Estados seus constituintes; tal não irá afectar a soberania de nenhum dos países europeus, antes pelo contrário, será a maior de todas as defesas para a salvaguarda da integridade política, económica e territorial de todos os Estados da União Europeia.
(...)
Pós-Escrita
Uma ilustração infeliz:
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(end of the item)